quarta-feira, março 31, 2010

Fábrica de histórias - Palavras para uma imagem


Titulo: Ó flor, dá para pôr?


Do alto do andaime, Carlos André e os seus companheiros serventes tinham como passatempo preferido, enquanto efectuavam as tarefas construtivas que a cada um estavam destinadas, a elaboração de piropos para mandar às beldades que por baixo da obra ou à frente desta passavam.

Magras, roliças, altas ou anãs, bonitas ou “escamartilhões”, todas levavam com uma boquinha de fazer corar as bochechas e alguns assobios, tão típicos, duma qualquer obra que por esse Portugal fora se realize. Era uma forma de aliviar o duro trabalho que trolhas, pintores e electricistas tinham a fazer. Não é fácil acartar baldes da massa!
Regra geral, não recebiam respostas aos piropos e sentiam-se protegidos pelas densas redes verdes que tapavam a obra, portanto era costume ouvir-se volta não volta um “olha lá, tu és da tmn? É que esse corpinho é um Mimo”, ou ainda um “com esse corpinho, fazia-te um vestido de saliva!” ou até mesmo um “ó estrela, queres co’meta?”.
Trocadilhos muito belos, que todos os trolhas julgavam ser verdadeiras pérolas para estas raparigas.
Costumavam inventá-los durante as suas horas de devorarem o farnel ou depois destas, quando faziam a digestão à base dum café com cheirinho ou um “copo de três” de vinho tinto, seguido dum bagaço que aconchegava o estômago.

Carlos André era o mais espontâneo, já inventara frases que ficariam para a história e todos gostavam que puxasse pela cabeça de forma a inventar nova chalaça.
As de maior sucesso, “Ó menina, vai para Roma ou vai pa’Parma”, “Ó jóia, anda cá ao ourives” entre outras, eram as mais recentes e que saíam com maior frequência.
Carlos, trolha, homem de 25 anos, solteiro e residente na Madragoa, tinha o secreto sonho de encontrar um dia, alguma catraia que lhe desse resposta à altura e jurara a si mesmo que, no dia em que isso acontecesse, desceria do andaime e abordaria a moça, pois acreditava que essa seria a mulher da sua vida.

Certo dia Leonor, moçoila de 21 primaveras, descia a rua de São Bento, vinda da 1800, pastelaria no Largo do Rato, em direcção à casa de sua avó na castiça Praça das Flores, atrás da assembleia da Republica, quando dum prédio, do seu lado esquerdo, ouve a seguinte declaração de amor:
“Ó flor....dá para pôr”?
Leonor, nariz empinado, confiante e destemida, continua a andar e tenta perceber se o engraçadinho se refere a si.
Ao dar-se conta de que mais nenhuma rapariga compartilhava o passeio ou aquele bocado de rua consigo, Leonor, ao seu bom jeito, sorri. Pára. Dá meia volta e volta atrás, subindo ligeiramente a rua, ficando virada de frente para o prédio, olhando-o.
Tenta, mas não distingue qualquer cara, apenas vultos que riam às gargalhadas, por detrás do verde pano que cobria a fachada da obra, com alguns assobios à mistura e uma música pimba de fundo que tocava na telefonia.
Leonor deixa acalmar a risota dos homens, impávida e serena, e do outro lado da rua grita:
- “Anda cá ó ‘jardineiro’ se queres ver quem te parte esse ‘cagueiro’!!!” – aguarda um pouco e por fim continua o seu caminho, deserta de se rir à gargalhada pela estupefacção e inexistência de comentários ou piropos em resposta! Apenas algumas gargalhadas de escárnio se ouviram quando voltou a andar.

Já perto da Assembleia, mesmo antes de dobrar a esquina que vai dar à Praça das Flores, Leonor sente um vulto a passar por si em corrida, mesmo ao seu lado, desenfreado, apercebendo-se no imediato que de um homem das obras se tratava.
O homem pára a uns dois metros dela, quase estatelando-se no chão com a travagem brusca e olha-a de frente, ofegante, fixamente nos olhos.
- Olá, sou o Carlos, és a mulher da minha vida! Como te chamas linda?
- Oi!? Diz Leonor meio assustada e sem perceber patavina da situação.
- Sou o Carlos André, estou à tua espera desde que comecei a trabalhar nas obras e aviso-te já que é contigo que vou ficar. Como é que te chamas? Diz Carlos ainda ofegante.
- Mas tu és bonzinho dessa cabeça? ‘Deslarga-me da mão masé’! Deixa de ser maluco pá. Conheço-te de algum lado? Reage Leonor.
- Desculpa lá miúda, vou te explicar! Fui eu quem te mandou a boca e tu 'conquistastes-me' ca tua resposta! Deixa-me pagar-te o comer! Imploro-te...

Leonor, meio desconfiada ainda, acede ao pedido do rapaz. O estranho rapaz, que naquele dia com um piropo meio ordinareco lhe conquistou a mão!

Hoje foi o dia do seu casamento, 21 de Agosto de 2010, uma festa de arromba aqui na Praça. Namoram mais ou menos desde essa altura. E eu, ainda pequenino, de mão dada à Leonor, assisti a tudo.
Desde o piropo, ao convite para almoçar, entre muitas outras coisas, naquele dia em que a minha irmã encontrou o amor da vida dela.

E pensar que tudo começou com um “ó flor, dá para pôr”!!!

Por: tomás pimenta da gama

sexta-feira, março 26, 2010

Sem Abrigo





"Mais uma vida, que passa a correr.Mais uma ferida, que ficou por ver.Chega à noite no jardim, hoje vai dormir num banco qualquer.Sem amor, sem saída,Esconde o frio numa manta esquecida.Sem calor, já sem vida,Sem saber que chegou o seu dia.
Mais uma história, que ninguém quis ver.
Para quem não olha é fácil esquecer.
Chega à noite no jardim, hoje vai dormir num banco qualquer.
Sem amor, sem saída,
Esconde o frio numa manta esquecida.
Sem calor, já sem vida,
Sem saber que chegou o seu dia.

Sem amor, sem saída,
Esconde o frio numa manta esquecida.
Sem calor, já sem vida,
Sem saber que chegou o seu dia."


Reflexão:
Quando passamos por um sem abrigo, normalmente temos uma de duas reacções possíveis. Viramos a cara e fingimos não ver, como se não existisse! Ou paramos, tomamos atenção, lembramo-nos que está ali uma pessoa que já teve um bilhete de identidade igual ao nosso, que é um ser humano e fazemos algo.
Não podemos ter a pretensão de querer mudar a vida daquela pessoa duma vez, mas o que falta a estas pessoas é a atenção. São pessoas extremamente sós, solitárias.
A nossa importância é sermos especiais no dia dessa pessoa. Termos atenção, perdermos dois minutos a falar com elas e estarmos! Apenas estarmos. Que significa estar a 100%, sem pressas e sem distracções. 2 Minutos fazem a diferença. Que diferença pode fazer no dia destas pessoas...sentirem-se importantes, sentirem-se amadas!

Porque muitas vezes é usado em vícios, custa-nos dar dinheiro?! Tudo bem! Damos uma sopa num café perto.
Custa-nos ver que passam frio ou estão demasiado molhados para passarem a noite em mínimas condições?! Tudo bem! Damos uma camisola que trazemos vestida (temos tantas).
São inúmeras as coisas que podemos oferecer a um sem abrigo que o vão ajudar no imediato e isso importa, mas não nos esqueçamos que o eterno (o que pode fazer diferença ou não no futuro) vale mais e uma palavra de esperança pode fazer ainda mais que uma sopa, um pão ou uma camisola.
Tomás.